CONTO: A MENINA,A IGREJA E UM MICROFONE. 5°LUGAR NO 1°CONCURSO LITERARIO MUNICIPAL DE LAGOA VERMELHA RS

A MENINA, A IGREJA E UM MICROFONE


Foi ao redor de um fogão de lenha que amigos de infância reuniram-se para relembrar o passado, as alegrias, tristezas e sonhos, uns realizados e outros tantos que tiveram que deixar de lado. Ali os amigos riram, choraram, pois ficaram tempos sem se verem, moravam longe um do outro, seguiram rumos diferentes, mas nenhum deles deixou de retornar à sua cidade natal, Lagoa Vermelha.
Esse encontro foi palco de muitas lembranças daqueles amigos. O pinhão sapecado na chapa do fogão, um café coado no coador de pano, e uma panela com um delicioso caldo de galinha caipira, o tradicional brodo,fizeram parte de um cenário do passado daqueles que ali estavam matando saudades.Mas aquela noite fria foi aquecida pelo afeto,consideração e carinho que eram os sentimentos que todos sentiam uns pelos outros.
Em meio a lembranças, lagrimas e gargalhadas, uma história em especial foi lembrada, digo especial porque ela aconteceu de uma forma tão inesperada e surpreenderam todos os que dela fizeram parte. Pode se dizer com certeza que essa história é daquelas que não se repete, não com tanta intensidade.
Quem lembrou dessa história foi ovacionado pelos demais, e teve como recompensa o prazer de contá-la com muita honra. E o contador da história ainda retrucou...
-Hei pessoal!E aquela da menina, da igreja e um microfone, ninguém mais lembra?
Perguntei com um olhar e um sorriso irônico.
-Conta você então.
Disse o mais velho da turma.
Comecei então, lembrando da personalidade da personagem principal, a menina...
Ela era simplesmente, ou melhor, ainda é a chorona, sonhadora e curiosa da turma. Ela morava em Caxias do Sul, seus avós maternos, tios e primos moravam em Lagoa Vermelha. As férias eram esperadas com muita ansiedade, pois ela adorava visitar a família. Já na chegada em Lagoa Vermelha seu pai parava o carro na beira da estrada pra ver a lagoa que deu origem ao nome da cidade. Ela perguntava muito. Queria saber tudo o que tinha acontecido ali naquele local, mas seu pai sempre respondia com muita sabedoria e certeza.
A Lagoa é vermelha mesmo pai?
É respondia o pai.
-É verdade que ela tem essa cor pelo sangue derramado em batalhas?E que tem muito ouro lá no fundo?
-Dizem que sim. E o ouro é sagrado, não pode ser retirado. Contam os mais antigos que muitos foram os que tentaram buscar o ouro no fundo da lagoa e nunca mais voltaram à superfície dela. _afirma a mãe.
-Pai, e São João Maria?Ele era santo mesmo?
-Olha filha, se era santo eu não sei, mas muitos dizem que ele era um profeta, que trouxe e pregava a palavra de Deus numa época de batalhas, e que foi em batalhas que o mataram muitas vezes, mas ele nunca morria. O corpo dele está sepultado aqui em Lagoa Vermelha, e ainda afirma-se que a água da Biquinha, aquela que tem a gruta da
Nossa Senhora Consoladora é benta, foi ele quem abençoou, por isso que quem bebe daquela água sempre volta por aqui. Até tem um ditado que diz ‘quem toma água da bica por aqui com certeza fica’
Enquanto o pai estava falando a menina satisfeita dava lhe um beijo como forma de agradecimento pelas informações dadas por ele. Embarcavam no veículo e vinha em direção a cidade. E foi num desses passeios que aquela história ocorreu.
Foi num fim de ano, toda família veio de Caxias do Sul, fizeram todo aquele ritual, pararam pra ver a lagoa, o pai respondeu as mesmas perguntas da menina, e enfim chegaram ao seu destino, que era o bairro que sua família morava. Eles moravam na Capela dos Micos, hoje B.Rodrigues, aliás, os moradores não gostam do primeiro nome não, ficam muito zangados quando alguém chama o bairro de capela, já deu muita briga feia por conta disso. O bairro era muito diferente, tinha muitas árvores, poucas casas, a escola Silveira Neto ficava ali nas proximidades da capela, do salão do bairro, quase o mesmo local em que está atualmente.
Depois de se reencontrarem, os parentes se organizaram para irem numa celebração em uma igreja missionária, já que era época natalina, e tinham o hábito de freqüentá-la. A igreja ficava muito longe dali do bairro, era perto do Lajeado dos Ivos, na verdade, passava pelo local, e seguia mais uma hora de caminhada, realmente muito longe, ainda mais caminhando. O caminho longo, escuro, com muito mato ao redor era por alguns momentos uma aventura para as crianças, que eram em grande quantidade, tinha crianças de idades diversas, mas todas muito alegres, pois era véspera de natal e a noite prometia muitas surpresas lá na igreja. Mal sabiam eles que iria ter muitas surpresas mesmo, principalmente para a menina. Essa por ser muito alegre foi cantando por quase todo o caminho. Esqueci de mencionar que ela também adorava cantar, até dizia que seria cantora e que teria um microfone só pra ela. Ela ia brincando com um graveto de árvore, como se fosse um. Seus pais ainda não tinham lhe contado, mas seu presente de natal seria um microfone de brinquedo. Naquele tempo Papai Noel é que trazia os presentes, ou pelo menos era nisso que as crianças acreditavam. Mas, como toda estrada tem obstáculos,aquela também tinha , eram porteiras, sanguinhas e até um pequeno rio, que pra atravessar era preciso passar por uma estreita ponte, nessa ponte acontecia um fato corriqueiro, a mãe da menina, já acostumada com suas manias sabia que a menina só atravessava a ponte no seu colo, caso contrário iriam ouvir muito choro e gritos, para evitar a menina era carregada nos braços da mãe. Depois de uma longa caminhada chegaram à igreja, que estava toda reformada, tinha algo muito lindo ali, um espaço todo feito de bambu, onde ficavam os missionários, o coral e muitos microfones. Ao avistar toda aquela aparelhagem de som, inclusive os microfones,a menina se realizou,imaginava-se ali cantando. As outras crianças estavam admiradas com aquele espaço de bambus, contavam um por um, queriam saber quantos bambus havia ali.
A menina se ajeitou bem em frente ao palco, escolheu o melhor lugar e acomodou-se, enquanto seus amigos se distraiam com os bambus ela sonhava com aquele cenário lindo bem ali na sua frente. O culto começou e a menina ali, sonhando, isso mesmo, sonhando, pois ela acabou pegando no sono, dormiu ali mesmo com um largo sorriso nos lábios. Os missionários seguiram o culto enquanto aquele anjo sorria dormindo. Terminou a celebração e a menina nem notou. As crianças se reuniram na porta de saída da igreja e receberam presentes, doces e um abraço do Papai Noel, e foram saindo, indo embora, inclusive a família da menina. As pessoas foram
despedindo-se, abraçando-se, e aos poucos a igreja foi ficando quase vazia, restava apenas a equipe, os organizadores da celebração, o coral que se apresentou na igreja e os missionários que eram de outra cidade. Quando se depararam com aquela meninA dormindo ali na frente do palco os missionários ficaram sem ação, não reconheceram aquele anjo que dormiu sorrindo quase o culto todo, não sabia quem era, com quem e de onde tinha vindo aquela doce criatura que sonhava tranqüilamente. Ao acordar com muitas perguntas foi que a menina percebeu que estava ali, sozinha, que fora esquecida pelos seus, e como não podia ser diferente,começou a chorar muito,gritava e os missionários foram entrando em desespero,não sabiam que providências tomariam pra resolver aquele imprevisto,jamais tinham vivido situação como aquela.Entre choro e perguntas incansáveis para saber quem era aquela garota que instantes atrás parecia um anjo,a equipe técnica foi desligando e guardando os equipamentos de som,nisso a menina parou de chorar e resolveu se identificar.Isso se eles montassem os equipamentos com os microfones,aquela era a oportunidade da vida dela,realizaria seu sonho na noite de natal.Mas a equipe se negava,já estava quase tudo encaixotado,mas ela não queria saber,se eles quisessem saber quem era ela e que parasse de chorar teriam que ligar os microfones.Pode?
Não tendo alternativa pra saber a identidade daquele anjo, que agora já não era mais anjo e sim uma menina muito determinada e segura de seus objetivos, resolveram ceder e iniciaram a tarefa.
A família da menina ainda não tinha sentido falta dela, estavam todos comentando o culto, a presença do Papai Noel e do altar que estava lindo, enquanto a criançada se divertia com doces e os presentes. Ao atravessar aquela ponte estreita que a menina só atravessava no colo da mãe foi que perceberam sua ausência, foi um desespero total, retornaram imediatamente para a igreja, que por sinal estava quase vazia. Depois de algum tempo os equipamentos estavam prontos para serem usados pela exigente menina,ela se preparou,estava emocionada e ansiosa, nem pensava na sua família, se já estavam em casa ou à sua procura, só tinha na mente que, realizaria seu sonho e nada mais. No instante que revelaria seu nome no microfone, sua mãe chega à igreja aos prantos, desesperada, mas aliviada, encontrara sua menina bem, e pior a chamou pelo seu nome. Juntamente com os outros a mãe agradecia a Deus e aos missionários por aquele momento, enquanto a menina desolada começa a chorar novamente, agora não precisava mais do microfone para sua identificação, nem fazia mais sentido toda aquela expectativa de realizar seu sonho, não tinha mais graça na verdade. O retorno de seus parentes foi a pior coisa que podia ter acontecido naquele momento, não havia mais necessidade do microfone e o pessoal da equipe também aliviada com o desfecho começou a guardar novamente os equipamentos, sem ao menos deixar a menina usa-lo, se bem que ela não queria mesmo. Sua mãe já havia dito quem era ela.
A menina saiu da igreja furiosa, decepcionada, calada, nem chorou mais de tanta tristeza. Ela até atravessou a tal ponte sozinha sem que ninguém precisasse pega-la.
Esse episódio marcou tanto sua vida, que aquele microfone que foi seu presente de natal ela nunca usou. E falar em ser cantora nunca mais também falou. Foi a decepção da sua vida, ou seria uma frustração melhor dizendo.
Quando terminei de relembrar esse fato me deparei com meus amigos emocionados, olhos lacrimejados e muitos sorrisos. Entreguei-me tanto às lembrançaS que percebi ali naquele instante que existem momentos, pessoas e lugares na vida da gente que nunca devem ser esquecidos.
Despedimos-nos daquele encontro reforçando nossa amizade e comprometendo-nos dispor de mais momentos como aquele.
Numa demonstração de carinho, meus amigos me deram um presente, embrulhado em um papel improvisado. Disseram-me que só abrisse quando eles já tivessem ido embora. Ao ficar sozinha abri o presente, era um pedaço de madeira insinuando ser um microfone, e tinha um bilhetinho que dizia...

“QUANDO TIVER SAUDADES DOS TEUS AMIGOS E DA TUA INFÂNCIA DIGA TEU NOME NESSE MICROFONE, MENINA”.